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A Bala Perdida - roteiro original de Lau Baptista

O jornalista e editor Nicolau Baptista é antes de tudo um artista. Amante das artes, produtor e editor de livros, bons livros, é também roteirista, como mostra a excelente histótia que escreveu sobre um tal Argemiro, um homem simples que se aventura em terras estranhas para concretizar um desejo mui sui generis.
Para os cineastas de plantão, eis uma bela história que dará um ótimo filme.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011
A Bala Perdida
Texto original de autoria de Nicolau Baptista, o Lau Baptista.


Argemiro Francisco da Silva nasceu e foi criado em Largo Verde, interior de Minas Gerais. Nunca viajou para longe, cresceu na cidade, estudou na escola primária da fazenda Santo Antônio, que era colada na cidade e tinha uma escola muito boa que ficava pertinho de sua casa.
Sempre foi um menino normal, não era o mais inteligente e nem o mais burro, sempre esteve na média. Sua família era pequena, o pai, a mãe, um tio, irmão do pai que morava no quarto dos fundos da casa e uma tia, que era uma irmã de criação da mãe.
Quanto completou 16 anos, já trabalhava na lavoura. Seu pai morreu de infarto numa tarde de céu muito bonito de um ano bem distante. Sua mãe, não aguentou, ficou amuada, vivia com o terço na mão e não deu um ano, morreu de tristeza.
O tio foi no ano seguinte. Apesar de sempre ter sido um homem grande e muito forte, pegou uma pneumonia e faleceu em 7 dias.
Argemiro passou por tudo isso de forma serena, como um homem responsável. Enquanto a tia teve que assumir as responsabilidades da casa, Argemiro assumiu o sítio, trabalhou dia e noite e, como uma forma de agradar aos pais e ao tio, não descansava um minuto.
Quando Miro, como agora ele era chamado pelos amigos, fez 22 anos, já era um homem feito e muito respeitado na cidade e na região. Homem simples, com pouca educação, mas bom “dimais”, como se diz nas Minas Gerais.
Foi nesse ano que Miro se apaixonou por Raquel de forma tão forte, que em menos de 6 meses estava casado. Afinal, pra casar é preciso ter casa e como se sustentar e isso, Argemiro tinha de sobra.
Durante 2 anos Miro foi o homem mais feliz da vida, sonhava dia e noite, dormindo e acordado, com Raquel, a mulher mais bonita do mundo.
Um dia, por capricho da natureza, Miro esqueceu a sua carteira em casa, quando voltou, encontrou Raquel na cama, na companhia do vizinho.
Argemiro chorou. Ficou arrasado, não sabia o que fazer, acabou não fazendo nada.
No dia seguinte, a tia morreu ao cair da pinguela no fim do quarteirão. A tia era muito teimosa e vivia andando pelas ruas, mesmo sabendo que não tinha bom equilíbrio e que já era muito velha.
Dias depois, noites sem dormir, fantasmas rindo em sua cabeça, Miro decidiu terminar com Raquel e dar um jeito na vida.
Conversou com ela, pediu para que fosse embora para bem longe e nunca mais a viu.
E depois desse dia, Argemiro nunca mais foi o mesmo. Acordava todas as manhãs no mesmo horário, trabalhava o dia todo, conversava muito pouco com as pessoas e dormia cedo.
Quanto Argemiro ia completar 40 anos, ele resolveu que queria morrer.
Não aguentava mais trabalhar, comer e dormir, sem ter qualquer expectativa ou esperança.
Argemiro ruminava e imaginava um jeito de dar cabo de sua vida. Mas sempre esbarrava num problema, sua formação religiosa. Além disso, sua falta de coragem não permitia que ele tomasse tal atitude. Então, numa noite quente, Argemiro achou a solução. Mudar para o Rio de Janeiro, morrer atingido por uma bala perdida.
A idéia era tão boa, tão perfeita, que Argemiro passou a noite em claro. Assim que o sol nasceu, saiu de casa e foi atrás do fazendeiro que era dono de quase tudo por ali, para oferecer as suas terrinhas, juntamente com sua casa.
O fazendeiro quis saber o motivo. Argemiro disse que era só e que queria conhecer o mundo, começando pelo Brasil. O fazendeiro aceitou o motivo, achou até louvável que um homem forte e só, fosse ao encontro do seu destino.
Negócio fechado, Argemiro se desfez das coisas pessoais, deu uns franguinhos para um, uns móveis para outros e em poucos dias embarcou para o Rio de Janeiro.
Aquela viagem foi longa e Argemiro pouco dormiu. Sua cabeça girava sem parar imaginando a possibilidade de ser atingido por uma bala perdida rapidamente e, ainda por cima, morrer na cidade maravilhosa.
Nem bem desceu na rodoviária do Rio de Janeiro, Argemiro foi se informar onde aconteciam os maiores tiroteios, onde morriam mais pessoas atingidas por balas perdidas.
Em pouco tempo Argemiro já estava hospedado num hotelzinho da beira da rodoviária, já sabia onde eram os principais “pontos quentes”, os horários melhores para ser alvejado e sabia até como chegar até os locais. E assim, ele foi para o primeiro ponto.
Ficou surpreso e assustado, quando chegou o horário em que lhe avisaram que os tiros começariam e os tiros começaram de verdade.
Era igual filme, pessoas correndo, tiros vindos de cima, de baixo e dos lados. Passado o primeiro susto, Argemiro lembrou o seu intuito e, sem qualquer receio, passou a andar no meio do tiroteio.
SAI DAÍ! - as pessoas gritavam, chamavam a sua atenção, mas Argemiro andava sem direção, atravessando o campo de batalha.
Nessa noite, depois de estar muito cansado e familiarizado com as guerras das ruas, Argemiro voltou para a pensão e dormiu esgotado.
No dia seguinte, Argemiro tomou café, foi pra rodoviária, comprou um jornal que falava do tiroteio e depois de saber tudo que estava acontecendo, quais eram as ações que estavam programadas pela polícia, pegou um ônibus e foi em busca da sua bala perdida.
Por volta de 15 horas, apareceu um caveirão para entrar na favela do morro do Alemão. Argemiro sorriu e foi correndo ao lado do caveirão, como se fosse um policial especial. As pessoas mais uma vez ficaram assustadas e gritavam para ele sair dali, mas nada adiantava, Argemiro embrenhava-se na favela com a certeza de que aquele seria o seu dia.
Rezava, explicava para Deus que ele não era o culpado, que apesar de achar a vida besta e sem graça, jamais teria coragem de suicidar-se. Mas, correr o risco de morrer, isso não podia ser pecado, afinal, todos corriam esse risco cada dia mais.
E assim, Argemiro foi sendo fotografo e filmado pelas TVs, jornais, pois ficava sempre na área de maior visibilidade dos cenários onde imperava a violência. E, apesar de todo o abuso de Argemiro, os dias iam passando e nada de uma bala acertá-lo de jeito. Teve dia, que ele sentiu a bala passando do lado da sua cabeça. Chegou a ouvir o zunido, mas nada de acontecer o desejado.
Não demorou muito e o Argemiro começou a ser reconhecido pelos jornalistas, fotógrafos e editores. E a curiosidade levou um repórter a procurá-lo para fazer uma matéria. Argemiro, que nunca tinha sido procurado por ninguém e para nada nessa vida, ficou todo inchado com a notícia e, logicamente, não falou de seu plano para encontrar uma bala perdida e dar cabo de sua vida.
Falou que era do interior de Minas, que assistia àquela violência toda pela televisão e que tinha ficado tão preocupado que resolveu ir para o Rio para ver de perto como era aquela guerra e o que poderia fazer para ajudar. Não explicou por que corria riscos andando no meio dos tiroteios, mas a matéria saiu no horário nobre, o jornalista falou dele como um cidadão que se preocupava com seus irmãos e assim, quase que do dia pra noite, Argemiro começou a ficar famoso.
Logo foi convidado para ir a um programa de rádio, depois a um programa de TV regional, virou jurado de um concurso de rainha do carnaval, com certa facilidade, Argemiro gostou daquela mordomia toda e deixou de pensar na sua bala perdida.
A mídia o adotou. Argemiro passou a ser reconhecido como um ser humano diferenciado, que se preocupava com os outros humanos ao ponto de correr risco de vida. Miro foi capa de muitas revistas, participou de todo tipo de programa de rádio e televisão e acabou sendo convidado para participar de um programa desses de confinamento, como o BBB.
No auge do seu sucesso, Miro começou a namorar uma moça de 32 anos, bonita, inteligente e representante de uma ONG que se dedicava a cuidar de pessoas que sofriam violência.
A moça ficou apaixonada por Argemiro. Achava que ele era sábio por nunca ter se metido com as pessoas da cidade grande e admirava a sua coragem e ousadia.
Argemiro, às vezes lembrava-se de sua vida, do motivo que o tinha levado para o Rio de Janeiro, mas rapidamente tirava aqueles pensamentos da cabeça e corria a lembrar as boas novas e a vida que estava levando.
Um dia, Argemiro estava voltando da praia, junto com a namorada, quando encontrou na porta de casa, nada menos, que o prefeito Municipal de Lago Verde. Argemiro, que nunca havia conversado com o prefeito, ficou admirado e o recebeu com todas as pompas.
O prefeito, depois de elogiá-lo, e perguntar como estava sendo a sua vida de sucesso, explicou que estava ali em nome da sua cidade natal, para convidá-lo para uma homenagem que a prefeitura, a Câmara Municipal e todos os cidadãos de Vale Verde queriam lhe prestar.
Argemiro, que imaginava nunca mais voltar àquele fim de mundo, concordou imediatamente e até imaginou, como ia ser bom voltar famoso.
Assim, ficou acertado que no dia 23 de dezembro, às 20 horas, na Câmara Municipal de Lago Verde, Argemiro Francisco da Silva iria receber a comenda Príncipe Pedro I, a mais importante de Lago Verde, menção honrosa que só era dada a pessoas muito especiais.
No dia 22 de dezembro, Miro pegou o avião rumo a Belo Horizonte. Lá, já tinha um representante do prefeito esperando por ele e, de carro, com chapa branca e ar condicionado, foi até Lago Verde.
O fazendeiro, o homem mais poderoso de Lago Verde, convidou o Argemiro para ficar hospedado em sua casa. E fez questão de contar pessoalmente para Miro, que havia doado a casa que havia sido da sua família para a prefeitura, e que, por unanimidade, a Câmara Municipal aprovou a sua idéia de fazer um Museu Argemiro Francisco da Silva.
Naquela noite, Argemiro não conseguiu dormir.
Agora, depois de 3 anos, ele era outra pessoa. Queria viver, queria muito conhecer tudo e, principalmente, amar sua namorada e curtir o sucesso.
No dia 23, logo cedo, para o café da manhã, apareceu uma comissão de pessoas da cidade que fazia parte da organização dos eventos. Tinha almoço com a imprensa e amigos, depois uma reunião com os vereadores e por fim, às 19 horas, a entrega solene da comenda no coreto da praça pública em frente à prefeitura. À entrega se seguiria um jantar solene com baile no Clube Lago Verdense.
O dia transcorreu como um filme. A cada minuto, alguém avisava qual era o próximo passo e Argemiro seguia à risca, sorrindo, dando autógrafos e apertando a mão de muitas pessoas.
Às 19 horas em ponto, o prefeito municipal abriu os trabalhos de homenagem a Argemiro e solicitou a banda militar de Quexadinha, cidade vizinha, a tocar o hino nacional.
Logo após o hino nacional, começou o falatório, e quando já estavam todos cansados de tanta conversa fiada, finalmente, o presidente da Câmara se levantou para então, colocar no peito do homenageado a comenda.
Quem viu de longe, não entendeu. Argemiro levantou-se, caminhou em direção à mesa e sorrindo, olhando para o presidente da Câmara, caiu feito uma manga madura.
Imediatamente, todos a sua volta o socorreram, achando que devido ao dia muito exaustivo, ele tivesse tido uma queda de pressão. Mas, quando o fazendeiro apoiou a cabeça de Miro no seu colo, sentiu algo quente nem sua mão.
Retirou a mão debaixo da cabeça e viu que estava coberta de sangue.
Uma bala perdida de um caçador da região atingiu seu lóbulo esquerdo com tal precisão que Argemiro nem percebeu que havia encontrado a sua bala perdida.
Lau Baptista (Idéia para um curta metragem)

Postado por José Márcio Castro Alves em 19 de janeiro de 2011