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Monólogo de um Homem Só
Olavo de Carvalho
Entrevista à Revista Top Magazine, ano 6, # 62,
março de 2004
(por Melissa Crocetti)
— Qual o papel da filosofia na sociedade brasileira de hoje?
OC — Nenhum, não tem. No panorama brasileiro, tudo que eu possa estar fazendo não faz o menor sentido, não tem função. É impossível uma atividade intelectual aqui que tenha uma função e uma utilidade social. Não tem uma rede de encaixes, entre os quais um círculo de leitores suficientemente aptos e preparados. Estou escrevendo para meia dúzia de pessoas e olhe lá.
— Não existe por que não é algo culturalmente cultivado?
OC — Vamos falar o português bem claro: no Brasil não existe nenhum ensino de filosofia. A filosofia se registra em livros e estudos. Estes estudos têm que ser publicados, lidos, comentados, interpretados e isso cria um monte de atividades secundárias em torno da filosofia. O que se faz aqui se parece mais com a filologia, a interpretação de textos. Quem faz filosofia no Brasil é isso. É como pegar uma coisa como o sexo. Ele envolve um monte de atividades, como fabricação de calcinhas, de camisinha, a rede de motéis, etc., só que isso não é sexo, são atividades em torno. E imagine um sujeito se tornar tão pervertido a ponto de achar que sexo é isso. No Brasil, as pessoas acham que filosofia é esse conjunto de atividade que a cerca. O Gianotti (José Arthur Gianotti, filósofo e professor da USP) acha que filosofia é essencialmente lidar com textos. Que texto escreveu Sócrates? Nenhum. Isso quer dizer que o texto é um registro da filosofia. E ainda o registro escrito pode ser deficiente em relação àquilo que foi descoberto, e muitas vezes é mesmo. O essencial é a investigação filosófica, que desenvolve uma responsabilidade intelectual tremenda e coloca a vida do sujeito em jogo, como colocou no caso de Sócrates. Isto é filosofia. Agora o conjunto de atividades intelectuais em volta, que pode existir ou não, é uma coisa secundária. Mas no Brasil já chegam a considerar que isto é a filosofia. Isto é uma perversão.
— Quem considera isso são os intelectuais?
OC — Os intelectualóides, não dá para chamar de intelectuais. A situação cultural do Brasil é catastrófica, não estão medindo o que está acontecendo. Não conheço nenhum caso de queda de nível e estupidificação como aconteceu aqui nos últimos 20 anos.
— Como nasceu o seu interesse pela filosofia?
OC — Pesa experiência política que tive no Partido Comunista. Saí dali cheio de pergunta na cabeça e não sabia responder. E também pelo lado das religiões, porque a primeira coisa que fui estudar mais sério foram as religiões comparadas, os simbolismos antigos, medievais, essa coisa toda. Daí surgiu uma série questões que requerem tratamento filosófico, então fui naturalmente para este lado. Mas não tinha nenhum projeto de ser filósofo no sentido profissional da coisa.
— Você disse que a gente vive em um caos cultural e que você escreve para pouquíssimas pessoas. Por que você continua??
OC — Porque não sei fazer outra coisa.
— Este é o seu prazer?
OC — Não diria prazer, porque prazer é uma coisa diminutiva. Diria que é uma paixão profunda, se não der prazer nenhum não vou largar do mesmo jeito. Quiser chamar de vício, chame. Mas acho que é mais da natureza humana, uma coisa que a gente faz porque não pode fazer outra coisa, nem saberia fazer.
— E quando você entrou na vida acadêmica?
OC — Foi só casualmente, nos últimos anos. Mas não acredito que o meio acadêmico brasileiro possa produzir filósofos de jeito nenhum. Como nunca produziu. Leia aquele livro do Paulo Arantes (Paulo Eduardo Arantes, filósofo e professor da USP), que chama Um Departamento Francês de Ultramar (Editora Paz e Terra, preço médio 40 reais). É uma tentativa de explicar por que em 50 anos de atividade a USP não produziu nenhum filósofo, e ele confessa que não produziu. E diz: “Nós não produzimos filósofos, mas produzimos excelentes historiadores da filosofia.” Bom, não conheço nenhum. Produziu um monte de palpiteiros. Eles falam da dona Marilena Chauí (Professora de História da Filosofia e de Filosofia Política da USP). O que é isso? É brincadeira. Quem tem alguma visão sabe que estes camaradas são primários. Não têm nada para dizer, é uma coisa só de atividade social de terceiro mundo e olhe lá.
— E se fôssemos um país de primeiro mundo, que papel teria a filosofia?
OC — É que se a gente não for do primeiro mundo intelectualmente, nunca vai ser economicamente. Porque a história coloca que as grandes conquistas intelectuais vêem antes da riqueza e do poder. Dificilmente as épocas de grande florescimento intelectual coincidem com o crescimento econômico. Às vezes acontece, mas é raro. Se você pegar a fase mais brilhante da filosofia moderna, que é o idealismo alemão, vai ver que na época a Alemanha era um país de m3rd4, sob o domínio francês. E a Alemanha se constitui, se ergue, 80 anos depois. Agora, aqui no Brasil, as pessoas são tão burrinhas que acham que a alta cultura depende do progresso econômico. A alta cultura depende apenas da iniciativa humana. O problema é que as pessoas confundem a alta cultura no sentido antropológico, a cultura popular. E esta requer dinheiro porque não se pode ter uma música popular florescente se não tiver um suporte na indústria do disco. A cultura popular depende de uma base material; a alta cultura depende muito pouco.
— E você acha que hoje a alta cultura é incompatível com a população brasileira?
OC — Nós não somos mais pobres que os alemães eram no século XVIII. A Irlanda civilizou a Europa e sempre foi um dos países mais pobres do mundo. Uma coisa não tem nada a ver com a outra, essa é até uma visão inferior que as pessoas têm. Imaginar que a alta cultura requer toda uma série de problemas econômicos resolvidos não corresponde historicamente à realidade.
— Viria de um esforço individual, então?
OC — Não diria individual, pode-se dizer que seria grupal. Sempre a alta cultura ceio de pequenos círculos. A Academia Platônica era formada por pouquíssimas pessoas. Sempre começa com grupos pequenos e os efeitos históricos são de grande envergadura. Então depende de um número de pessoas capacitadas e que assumam a responsabilidade.
— E os intelectuais percebem esta responsabilidade?
OC — Acho que nunca perceberam. Quando se fundou a USP, por exemplo, os fundadores estavam seguros de que enquanto o Brasil fosse um país economicamente subdesenvolvido, não se produziria filosofia de primeira ordem, e por isso não a produziam. Então eles se hipnotizaram a si mesmos, se paralisaram a si mesmos com a ilusão de que precisava haver o progresso econômico primeiro. E, se você não acredita que uma coisa é possível de ser feita, não vai nem tentar fazer.
— Ao longo do tempo você se tornou pessimista?
OC — No Brasil? Sou meio cético com qualquer previsão de futuro. Mas se você me perguntar se, no momento, vejo alguma coisa positiva que possa frutificar, a resposta é não. Nada em parte alguma. Sabe quando o sujeito começa a ficar louco e começa a se boicotar? O Brasil inteiro está assim. Ele só aposta no que não pode dar certo.
— E o presidente Lula?
OC — Esse é o primeiro. Como pessoa humana, ele é um camarada que conseguiu um efeito externo muito maior que o crescimento da sua pessoa. Em termos intelectuais ele cresceu muito pouco. Cresceu nada, ele continua o mesmo idiota que ele era na década de 80. E, ao contrário, externamente cresceu. E quando isso acontece não foi o sujeito que conduziu o processo, os outros é que colocaram ele lá. Ele nem entende o que está fazendo, não tem a menor idéia, está perdido no espaço. E apostaram nele justamente porque era um homem de má qualidade. O brasileiro tem complexo de achar que uma pessoa é melhor do que ele, ele não pode ver uma pessoa melhor que não gosta.
— Mas o Serra seria uma opção melhor?
OC — Não, o Serra é até pior. Esse que era o problema. Mas tudo foi encaminhado para que não tivesse saída. Um ano antes das eleições eu já dizia que o Lula seria eleito e que não tinha nenhuma outra possibilidade, porque no Brasil só existe um partido político. Partido político tem que ter uma direção e uma militância organizada. Os outros só têm alguma atividade na época de eleição. O PT age o tempo todo e tem um plano abrangente para a sociedade, além do fato de ser o único partido que realmente quer o poder. E acabaram botando o Lula porque é um sujeito sem instrução. Só por isso. Uma espécie de vingança.
— Inconscientemente?
OC — É um reflexo inconsciente, mas não tão inconsciente assim. É semiconsciente. Imagine a mulher que teve cinco ou seis desilusões amorosas, com um camarada do nível social dela. Então ela decide pegar o primeiro vagabundo que encontra na rua. É um ato de desespero. “Já que não deu certo pelo sensato, vou pela loucura para ver se dá certo.” No Brasil é a mesma coisa.
— Pode-se dizer que qualquer uma das quatro opções seriam suicídio?
OC — Uma vez montado o quadro eleitoral, todas elas seriam suicídio. A gente não pode esquecer que, daqueles quatro candidatos, três pertenciam ao foro de São Paulo. E eles estavam comprometidos desde 1994 a trabalhar pela eleição do Lula. Então a eleição foi uma farsa. E o Serra, mesmo sabendo disso, não quis botar a boca no trombone porque é um covardão, não vale o que come. Essa eleição foi uma fraude em todos os sentidos, não foi uma eleição.
— Você já pensou em morar fora do Brasil?
OC — Já pensei. Mas antigamente eu era contra que fazia isso, ficava louco da vida quando alguém abandonava o Brasil. Hoje vejo que eles estavam certos, eles nem sabiam que estavam certos, mas estavam. Abriram uma perspectiva de vida que eu aqui não tenho.
— Perspectiva financeira?
OC — Não, financeiramente até que não estou ruim, tanto tempo dando aula alguma coisa eu tenho que ganhar. É intelectual mesmo. Aqui não tem com quem conversar, tem dois ou três no máximo. Há um ano estive em um congresso de filosofia nos Estados Unidos e em três dias tive mais atividade intelectual que em vinte anos no Brasil. O que está acontecendo é que o Brasil está separado do resto do mundo por uma distância cósmica, se mede em anos luz, não dá mais para ser transposta. As pessoas não conseguem mais imaginar o que seja uma atividade intelectual séria.
— E, no resto do mundo, de que maneira a filosofia se insere na vida da sociedade?
OC — Ninguém que faz um esforço na ciência da filosofia pretende que isso se encaixe na vida cotidiana de quem quer que seja. Porque a curva que você percorre entre a investigação e os efeitos sociais é muito longa, de mil, dois mil anos. Um filósofo sério não espera que o que ele está dizendo tenha uma autoridade pública para toda a população, só se for um maluco. É que aqui no Brasil já se espera que o filósofo pense isso porque se confunde filósofo com ideólogo. O filósofo sabe que não vai alterar o curso das coisas no prazo de vida dele. Aristóteles viveu 400 anos antes de Cristo. Quando é que existe na Europa um interesse maior pela obra de Aristóteles? Em 1200, que dizer, passaram 1600 anos. E isso é normal. Agora, se Aristóteles fosse contar com isso, ele iria morrer frustrado. A atividade de alta cultura não é imediatista.
— E você acha que no futuro o seu trabalho terá importância?
OC — Isso, para mim, não é problema. Você não pode confundir um cientista de laboratório com o Michael Jackson. O cientista não precisa ser aplaudido pelas multidões, ele não pode precisar disso. Se ela precisa, não está bom da cabeça. Ou se está na área de altos estudos ou você está no show biz. Não dá para fazer as duas coisas ao mesmo tempo.
— E por que a Marilena Chauí é uma filósofa pop?
OC — Em parte porque existe a vocação política do prestígio, então, se existe um prestígio intelectual autêntico, ele tenderá a ser explorado por uma organização política que tenha poder sobre aquela pessoa. E, se não existe prestígio autêntico, ele será fabricado. Coincidiu que a Marilena Chauí foi escolhida para ser a filósofa do PT, então acabou criando-se essa palhaçada em torno dela. A mulher é um nada, a obra inteira dela não vale nada, não tem por que ser lida, não tem porque alguém prestar atenção naquilo dez minutos. No entanto, cria-se uma lenda, uma figura de propaganda, é deplorável, é triste, triste, triste. Eu escrevo em jornal por duas coisas: primeiro para ganhar dinheiro e segundo porque tem umas coisas que têm que ser ditas e que ninguém está dizendo. Por um lado é uma atividade profissional e por outro é até um dever de caridade. Às vezes, as coisas estão tão confusas e estou entendendo o que está se passando e explico, mas ninguém entende na hora.
— Isso porque geralmente não se tem a visão histórica dos fatos?
OC — Às vezes as coisas estão acontecendo pela centésima vez e para as pessoas é a primeira. Também o fato de que esse pessoal da USP, que tem toda essa formação marxista, só entende as coisas em termos de ação coletiva. E eles pensam que eu também tenho um partido, uma ligação com alguma coisa, que alguém está pagando para eu escrever o que escrevo.
— Existe direita e esquerda no Brasil, na sua opinião?
OC — O Brasil nunca teve partido de direita. E as pessoas nem sabem o que é um partido de direita. Fui saber o que era um partido de direita depois que fui estudar como era a parte republicana dos Estados Unidos e a parte conservadora da Inglaterra. Aqui nunca existiu isso porque tudo veio chupado de fora, aqui é tudo muito recente. Vai ser conservador por quê? Você pode fazer um partido conservador quando se tem uma história antiga e valores consolidados que merecem ser defendidos. No Brasil nada se transforma em tradição, tudo se perde, de geração em geração tudo se perde.
— Isso é comum em países colonizados mais recentemente? Porque os Estados Unidos também são um país recentemente colonizado, historicamente.
OC — Só que eles absorveram profundamente a alma da Europa e nós não. Nós entramos na história intelectual do mundo na época da Revolução Francesa. E só conseguimos absorver, em partes, o que aconteceu depois disso. O Brasil não consegue captar. Ficou por um lado a ilusão de se europeizar e, por outro lado, a ilusão de romper com a Europa e se brasilianizar. Nenhuma das coisas é possível. Fica essa coisa do internacionalista e do nacionalista, que é um problema que cronicamente volta ao debate e que só mostra a incompreensão da situação. O que tem de ser absorvido não é a Europa, mas a humanidade. E isso ninguém pensou, eles só pensam em imitar, chegar ao padrão europeu. E para que serve o padrão europeu de agora? O padrão europeu de agora resulta da história e da evolução deles ao longo de milênios. O que se pode fazer é pegar aquilo que foi criado de importante nos vários setores do conhecimento e que não tem dono. Você começa um país fazendo três coisas: traduzindo a Bíblia, Platão e Aristóteles. Isso não foi feito aqui até hoje. Aqui, ao invés de eles tentarem absorver este legado milenar, eles tentaram absorver o que estava acontecendo naquele momento na Europa. Aquele momento passou. Então tudo que nós absorvemos não serviu para nada. Todo o nosso esforço cultural foi mal dirigido desde o início.
— Por quê?
OC — Porque o sujeito tem complexo de não ser europeu, então ele quer absorver a Europa, só que ele vai absorver a Europa da moda. E não a Europa de milênios, que já não tem dono. Mas o esforço aqui nunca foi dirigido no sentido de pegar os bens de valor permanente, e sim os que estão em evidência no momento. Quando o momento passa você vê que não tem nada na mão.
— E a mídia é a grande culpada?
OC — No Brasil a mídia tem uma importância coligada, porque, como não tem um sistema educacional consolidado, a mídia exerce em parte a função de guia do sistema educacional. Isso quer dizer que aqui a mídia tem mais autoridade do que em outros lugares. Para consertar o Brasil tem que começar por consertar a mídia. Para consertar a mídia tem que consertar uma série de intelectualidades. Para consertar a intelectualidade vai 30, 40, 50 anos para mais. Quando comecei a dar cursos, a minha idéia era tentar formar uma nova geração de intelectuais, mas hoje estou descrente porque acho que – não que eu tenha feito a coisa errada --, comecei tarde demais. Quantitativamente o meu esforço é único. Até que estou na direção certa, mas com a velocidade e a potência erradas.
— Quais sãos as maiores dificuldades que você encontrou para dar os cursos?
OC — No começo não percebia que a resistência da sociedade brasileira ao conhecimento e à inteligência era tão profunda. Achava que as coisas seriam mais fáceis. Mas notei que o sujeito começava a estudar, só que daqui a pouco ele se sentia desajustado no meio, a namoradinha dele começava a estranhá-lo. Então criava-se um conflito e o conflito naturalmente terminava com o sujeito desistindo dos estudos para não perder os amigos, não ficar um estranho no meio. Só que é obviamente impossível estudar e continuar no mesmo meio social. A pessoa que estuda convive mais com pessoas que também estudam. Então você tem que desistir de algumas coisas. Não é possível evoluir intelectualmente e conservar os mesmos interesses, os mesmos valores. Você está mudando e vai ter que encontrar pessoas que estão indo na sua direção. Agora, se a amizade do garoto do bairro e da namoradinha de 15 anos é tão importante, você nunca deveria estudar.
— Muitos alunos desistiram?
OC — Desistiram e ficaram até bravos. Uma vez um cara disse que não queria mais estudar porque a namorada dele não iria mais chamar ele de ‘meu fofinho’. Então, fofinho, volta pra casa e vai lá. Tudo isso é de uma miséria psicológica muito pesada. O desnivelamento social de uma pessoa de estudo no Brasil é uma tragédia. Lima Barreto passou pelo mesmo problema. Ele saiu de um meio relativamente pobre, através do estudo ele se destaca, então ele não se encaixa mais naquele meio. Mas, por outro lado, onde ele deveria encontrar homens sérios, ele encontra um monte de charlatães e de figuras do beatiful people. Embaixo ele não encaixa mais e em cima só tem m3rd4. Mesmo homens casados, já estabilizados na vida, quando começam a estudar não agüentam. Vamos dizer que é um sujeito que tinha vocação intelectual, mas não sabia. Então, ele pegou um outro trabalho qualquer, se dedicou àquilo e construiu uma família baseada naquilo. De repente a inteligência do cara desperta. Só que a da mulher dele não desperta, então ele vê que já construiu uma vida que é incompatível com aquilo. Tem várias saídas: uma é tentar trazer a família junto; outra é romper com a família e tentar outra; outra saída é você tentar agüentar o repuxo. E assim por diante. Mas a pressão psicológica da sociedade brasileira para baixo é muito grande.
— A questão do convívio social é uma das mais complicadas em relação ao estudo?
OC — É porque aqui todo mundo tem que ser popular. Essa coisa pop do brasileiro é terrível, o pop universalizou, tanto que botaram um homem desse para ser ministro da cultura. E em alta cultura não se fala porque alta cultura não é modo de expressão de ser do povo. Alta cultura é internacionalidade, é um patrimônio da humanidade. Ninguém vai ler Shakespeare hoje para conhecer a época elizabethana. Você vai ler Shakespeare porque ele te dá alguma coisa. E ele não é uma expressão do meio, porque, se fosse, acabaria junto com o meio. Só que no Brasil só se entende cultura como expressão da coletividade, então é só baixa cultura, cultura pop, moda. Você vê o tanto de teses universitárias que existe sobre sambistas, roqueiros, e isso é absolutamente impressionante, mas todo mundo faz. É fosfato jogado fora. Porque são coisas que depois só vão continuar a existir por causa desse material universitário. No fim vai ter um patrimônio de cultura pop tão imenso que não vai bem mais poder ser consumido. E as pessoas, com isso, perdem o centro das proporções. Se você faz uma tese sobre Nelson Cavaquinho, ele fica lá na sua cabeça como se fosse uma espécie de Shakespeare, o cidadão não consegue mais perceber a diferença. Mas aqui a matéria-prima comeu a forma. Letras de Chico Buarque e Caetano Veloso são estudadas como se fossem sei lá o que, e isso não faz sentido. E por que as pessoas querem ser populares? Porque elas têm um p*t* complexo de inferioridade. Eles dizem que intelectual é um tipo entojado.
— E não é?
OC — Talvez no seu meio intelectual seja isso mesmo: um cara da USP todo engomado. Mas isto está errado porque ele não é um intelectual e ele também não sabe o que é um intelectual. E, infelizmente, a necessidade de auto-expressão do brasileiro é muito intensa. O brasileiro gosta muito de falar e a necessidade de conhecer do que fala é mínima. Ele acabou de ouvir falar de um negócio, imediatamente tem opinião formada, e tem que sair falando a opinião. Então é tudo muito periférico, nada sólido. E o desgaste disso é trágico. O que se gasta de papel e de energia com bobagem é uma loucura.
— Mudando um pouco de assunto, saiu uma pesquisa recentemente dizendo que é o consumismo que vai acabar com a humanidade.
OC — E o que eles opõem a isso? Eles opõem o coletivismo que é a mesma coisa. ‘A gente tem que lutar contra os consumistas, tem que lutar por uma sociedade que tenha acesso aos bens.’ P*rr*, que graça! O coletivismo e o individualismo não são temas opostos. Só que no mundo moderno as sociedades são mais democráticas, são ao mesmo tempo individualistas, porque cada um busca uma coisa para si, não se sacrifica por algo que é superior. Mas, ao mesmo tempo, todos são iguais porque todos querem as mesmas coisas. Onde se tem o individualismo se tem o coletivismo. Se o sistema é democrático, vai ser sempre individualismo e coletivismo. O consumo de massa não é nada mais que o coletivo de um conjunto de individualismos.
— Você já sofreu censura?
OC — Aconteceu raramente, mas aconteceu. O que aconteceu primeiro foi um boicote generalizado a tudo que faço. Sobre o Imbecil Coletivo (O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras. Editora Academia Brasileira de Filosofia, 1996), por exemplo, a única crítica que saiu não tinha nada a ver com o meu livro, ele estava falando de outro livro e não do meu. Até o número de páginas estava errado. Teve também o episódio da revista Época. Mudaram o diretor lá e primeiro ele transformou a minha coluna, que era semanal, em mensal, botou outros três para escrever juntos, que eram três idiotas, e depois cortou a coluna, alegando motivos de economia, que eram falsos. Era um preconceito político. E depois ele, respondendo a uma carta dos leitores, se traiu confessando que era um motivo ideológico.
— Estranho você escrever para a Época, não é?
OC — Tudo era meio estranho, muito esquisito. Escrever para a mídia em geral é estranho. Porque os artigos são curtinhos, não se tem tempo de argumentar, coloca-se uma posição e está acabado, e acho isso uma bobagem. Porque, se você abre a boca, é para falar sério, se é para falar sério, tem que provar e para isso aí precisa tempo e espaço. E na mídia é tudo minimalista.
— Você vê futuro para o Brasil?
OC — Não, no momento não. Hoje em dia todas as nossas leis vêm prontas da ONU. A careira do Zé Serra foi constituída disso: de ir lá, bater continência e falar ‘quais são as normas, chefe?’. Só isso. E eles acham que com isso estamos alcançando um nível internacional, chegamos aos parâmetros da ONU. Então o governo brasileiro é apenas uma gerência local da ONU, não é nada. Já é assim. Conserva-se esse simulacro de identidade nacional, mas é só para enganar trouxa. O Brasil não tem mais autonomia nenhuma, isso é besteira. Nosso governo está em Genebra, não aqui. E eles ficam arrotando nacionalismo em cima dos americanos por quê? Porque o americano está ausente daqui faz vinte anos. A política norte-americana no Brasil há mais de vinte anos se caracteriza pela total ausência. Então você está falando contra um imperialismo inativo porque você só cedeu para outro imperialismo ativo. Yankee go home! Fala-se da Amazônia, p*rr*, na Amazônia está cheio de estrangeiro, mas não tem nenhum americano. Tem belga, alemão, francês, está tudo lá e eles estão falando ‘yankee go home’. Estão falando para a pessoa errada. É tragicômico porque eles vão no ponto que não existe, porque para o ponto que existe, eles já cederam completamente. Quando chega a esse ponto de alienação, eu desisto, não dá.
— E, em relação à educação, o que você pensa?
OC — Atualmente acho até perigoso botar criança na escola. Porque o ensino chegou num ponto que não dá mais para comentar, chamar de crise é otimismo. O que existe é a total decomposição, não existe a menor idéia do que seja educação. Fala-se em educar criança para o futuro. Mas se eu educar uma criança para o futuro, vou ensinar a ela uma coisa que não conheço. A função da escola não é preparar ninguém para o futuro, no futuro ela vai ter que se virar. Você não sabe se elas vão querer esse futuro que você está querendo. Então as crianças estão sendo usadas apenas como suporte publicitário de campanha de governo.
— E, sobre as relações do Brasil com os Estados Unidos, o que o senhor acha?
OC — O Brasil está fechando as portas há muito tempo. Eles estão comprando uma briga com os Estados Unidos e não sabem o que estão fazendo. Aqui, basta um porta-aviões americano encostado para desmantelar toda a nossa cadeia de telecomunicações e elétrica. Eles estão diminuindo a estrutura do exército cada vez mais e, cada vez mais, com uma política hostil. E pode ser uma tragédia. Não temos condições nem para começar uma guerra. E não vai ser por ocupação de território porque americano não vai pensar em ocupar um território deste tamanho, mas eles não precisam ocupar, basta destruir. O Brasil pode sair do mapa assim, puf. E está fazendo tudo por isso. Olhando por esse aspecto, toda a nossa história é uma ilusão. É o que se chama de pseudomorfose. Pseudomorfose é uma cultura fraca que começa a se desenvolver do lado de uma cultura mais forte, até some. A América Latina, pensando bem, é toda uma pseudomorfose. Porque toda a cultura da América Latina é só uma cultura de ressentimento, a cultura do próprio fracasso.